ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

DISFARCES E ERRÂNCIAS NA PROSA DE CAIO FERNANDO ABREU

 

 

Rodrigo da Costa Araújo

 

 

I. PRIMEIRAS ENTRADAS

 

“Queria tanto poder usar a palavra voragem. Poder não,  não quero poder nenhum, queria saber. Saber não, não quero saber nada, queria conseguir. Conseguir também não - sem esforço, é como eu queria. Queria sentir, tão dentro, tão fundo que quando ela, a palavra, viesse à tona, desviaria da razão e evitaria o intelecto para corromper o ar com seu som perverso. A-racional, abismal. Não me basta escrevê-la - que estou escrevendo agora e sou capaz de encher pilhas de papel repetindo voragem voragem voragem voragem voragem voragem voragem sete vezes ao infinito até perder o sentido e mais nada significar (...) Eu quero sê-la, voragem”.

 

ABREU, Caio Fernando. No centro do furacão. In: Pequenas Epifanias. p.52

 

 

Este ensaio imbricado entre os discursos literário e histórico procura demonstrar que a escritura de Caio Fernando Abreu (1948-1996) é pautada no recorte, construída de restos e citações. Privilegia-se nessa leitura semiológica o traçado escritural, histórico e literário, tecido nos fios de um palimpsesto que guarda os restos mnemônicos do texto citadino e pós-moderno. Em linha paralela,  o ensaio discute a exaustão do sentido contemporâneo, implícita na metáfora da literatura como experiência urbana e atrelada a um contexto histórico finissecular.

 

Através desses olhares é possível levantar questões a partir do papel da literatura e da sua aproximação com outras áreas do conhecimento, em especial atenção a história, através de um viés intertextual1. No caso dessa leitura utilizaremos alguns contos do livro Morangos Mofados  para ilustrar aspectos discursivos e representações literárias de experiências ocorridas em contexto autoritário.

 

O leitor, acompanhando a epígrafe acima, torna-se uma escuta e segue a trajetória do texto, deslizando em sua superfície ora como participante do discurso, ora vivenciando a voragem. Terá sempre que rejeitar um caminho linear para assumir contornos rápidos, vislumbres que o escritor/narrador oferece de si e de seus personagens. Abdicará da ótica que procura encontrar nos textos o reflexo da realidade empírica.

 

A “palavra-voragem” e a errância nos dezoito contos de Morangos Mofados, assumem vários contornos, temas e focos, mas todos aproximam-se da desilusão e do prazer intenso de narrar criticamente a descrença na sociedade, fracassos amorosos, marginalidade sexual. Contemporâneo de uma geração que assistiu ao golpe, à repressão estudantil e à tortura, Caio Fernando Abreu a partir dessas vivências ocupou-se e escreveu do segmento excluído, do homem marginalizado por essa conjuntura. Sua “escritura-voragem” procura representar sentimentos, gestos, experiências as quais, como um quebra-cabeça, traçam o perfil de um momento importante de nossa história, falando da crise da contracultura enquanto projeto existencial e político e do desgaste sofrido pelo sonho de uma realidade alternativa.

 

 

II. O REPÓRTER DE UMA GERAÇÃO

 

“A literatura é mesmo, como a transgressão da lei moral, um perigo”.

BATAILLE, George. A Literatura e o mal. (1989, p. 22) 

 

Segundo Heloísa Buarque de Holanda, em “Hoje não é dia de rock I e II” (1982), o escritor revela uma certa perplexidade frente à falência de uma utopia, mas principalmente indica que é fundamental achar uma saída capaz de arrebatar todo a riqueza dessa vivência para que novos sonhos e projetos, mais ajustados ao real, possam se concretizar.

 

Morangos Mofados pode ser lida como uma obra empenhada em representar, na estrutura formal dos contos e não apenas na temática, aspectos da sociedade conservadora do fim dos anos 70, num momento que embora fosse de transição política, ainda perpetuavam valores de uma concepção tradicional de conduta social.

 

As temáticas da desilusão e da errância aparecem divididas em três partes do livro de contos mais conhecido desse autor. A primeira “ O Mofo”, em que resumem o processo de uma espécie de apodrecimento pessoal e descrédito que toda uma geração havia experimentando; o clima angustiante e deprimente torna os contos muitas vezes heméticos ou alegóricos2. Entre essas e outras reflexões, encaixam-se os contos “Os Sobreviventes” e “Eu, Tu, Ele” -  ambos perseguem a angústia de personagens que efetuam uma avaliação crítica de seus sonhos, projetos e posicionamentos político-ideológicos num contexto de proibições. “A alegorização de temas políticos surge como uma arma inteligente na denúncia das arbitrariedades”3.

 

Na segunda parte, a palavra na concretude de seu lado sensível e através do significante “Morangos” ( “Os morangos”), o escritor analisa a condição do homem em conseqüência do processo do “Mofo”, apontando algumas saídas para as personagens; os objetos e as pessoas focalizadas são mais concretas, o que torna a linguagem menos hemética. Endossa Caio ainda no início do livro com uma epígrafe de Clarice Lispector: “Quanto a escrever, mais vale um cachorro vivo”.

 

Por fim, o terceiro bloco que constitui-se de apenas um conto, - “Morangos Mofados”, - esboça-se uma certa solução, um pouco mais concreta, confirmando por parte do escritor um ponto de vista que inscreve no ser humano “frescos morangos vivos vermelhos”. (ABREU, 1995, p.152)

 

De modo geral, os contos desse livro apontam o reencontro do texto com o sujeito; este, antes exorcizado pela Semiologia, ressurge agora na sua natureza fragmentária, imaginária, como o eu que se encena e se representa em virtude de inúmeras proibições do momento histórico.

 

Nos anos 70, tanto aqui como na França, o estruturalismo é questinado nos seus princípios e por seus próprios representantes, notadamente Roland Barthes. O discurso “científico” regulador do objeto e repressor do sujeito, é lido, segundo Eneida Maria de Souza “ no seu caráter de espetáculo, quando Barthes revela ser todo e qualquer saber indissociável de um trabalho de escrita e de enunciação”. (1993, p. 4). Segundo a pesquisadora, o projeto do semiólogo, após 1968, com o livro S/Z, de 1970 rompe-se com a posição assumida pelo autor até então, iniciando uma nova fase , que trará, em 1973, O Prazer do Texto. Na ênfase em defender a escritura do autor, “ o prazer do  texto comporta uma volta amistosa do autor; o autor que volta não é uma pessoa, é um corpo” (1990, p.11) assim se expressa Barthes em Sade, Fourier, Loyola. Esse corpo, forma o vazio, fantasma do sujeito, presente na feitura dos contos de Caio Fernando Abreu, traz a marca de um corpo semiológico, situando-se na superfície da linguagem e na ficção.

 

No  Brasil, a abertura política dos anos 70 trouxe a avalanche de relatos e autobiografias de ex-exilados, em que narrar, segundo Flora Sussekind “ passa a ser sinônimo de auto-expressar-se, funcionando a maneira de uma certa carteira de indentidade para quem escreve” (2004, p.95).

 

Assim, o discurso crítico de Caio Fernando Abreu, centrado no sujeito, é responsável pela configuração de uma certa parcela da literatura pós-moderna ou pós-estruturalista. Caraterizada por uma linguagem alegórica, verborrágica, pela ausência de recursos habituais de pontuação, seus contos permitem ao sujeito se expor, se arriscar, perder um pouco o pudor e, às vezes, explodir em confissões e errâncias constantes.

É nesse sentido que muitos de seus personagens são seres isolados do universo que os cerca e apresentam, através de seu modo de ver o mundo, feições de loucura4. Contudo, se a princípio a loucura parece ser apenas uma conseqüência da realidade repressora, num segundo momento, e em contra partida, ela revela-se como único meio de representar a oposição entre indivíduo e as pressões sociais. Tal visão está sugerida nos contos “Além do ponto” e “Luz e Sombra” quando os personagens vivem na barreira entre a experiência subjetiva e o mundo concreto, e podendo, algumas vezes, revelar-se numa experiência incomunicável, silenciosa e ambígua.

 

A repressão sofrida pelos personagens não se restringe ao nível social, serve como atmosfera rarefeita, de gestos delicados, de sentimentos discretos que mal se revelam. Alguns personagens constroem-se como verdadeiros prisioneiros de si mesmos, os quais habitam espaços fechados, pequenos apartamentos e bares, ruas escuras e vazias.

 

Ao longo de sua meteórica carreira literária e através de uma linguagem introspectiva, Caio nunca foge de sua temática mais recorrente: o ser humano.  Morangos Mofados tematiza retratos de personagens desumanizados, reflexo da fragmentação da sociedade, manobra da ditadura e da censura da época.

           

III. TRANSGRESSÃO, EROTISMO, DISFARCES

 

Segundo Rodolfo Franconi, em Erotismo e Poder na Ficção Brasileira Contemporânea (1997, p.15) a narrativa dos anos 70 preocupava-se em flagrar as convenções inflexíveis e maniqueístas, encobertas pela fachada da tolerância, por isso mesmo perniciosa nos autores dessa geração. Mas, é, segundo o estudioso, nos anos 80 que esse tema “ conflui para uma objetiva intencionalidade, ou seja, a focalização dos problemas que a sociedade brasileira veio a enfrentar após o longo período de repressão por que passou”.

 

Em Caio, esses textos, colhidos de um contexto repressor, trazem à tona o discurso que costuma ser ocultado através de uma linguagem alegórica, altamente crítica, misturada ao estilo de denúncia, paródia, sátiras ou deboches dos valores e da moral. Uma escritura que poderia ser batizada de erografia5( a escrita de Eros) ou mesmo de metaficção históriográfica, segundo as pesquisas de Linda Hutcheon.

 

A relação existente entre o mundo real e as pistas textuais dos contos nem sempre são equivalentes, o que, de certo modo, reproduz um traço das narrativas contemporâneas. Em seus estudos sobre os romances das décadas de 70, 80 e 90, Therezinha Barbieri (2003, p.99) já ressaltava que:

 

Quase sempre, no trânsito entre História e ficção, o resultado é que acontecimentos fictícios ganham plausividade histórica e o fato histórico se irrealiza nas teias da ficção. Na verdade, a narrativa histórica comporta elementos e procedimentos de elaboração ficcional, assim como a ficção reelabora componentes derivados de fontes históricas.

 

Por outro lado, a transgressão e o erotismo, nesse período, são focos que invadem os textos e o campo da “ vontade do impossível” segundo Bataille, uma vez que busca, no temporário, o perene. De certa forma, a experiência pessoal do escritor, através de seus personagens, é relatada ou dramatizada, trazendo como pano de fundo a leitura e discussão dos problemas de ordem filosófica, social e, também, política. Errantes, os personagens, vão “revestir-se de uma aparência específica, depois assumir uma outra aparência para desempenhar um outro papel na vasta teatralidade social”. (MAFESSOLI, 2001, p.90)

 

Os personagens, mascarados ou disfarçados, de uma forma ou de outra, engendram uma situação ambígua no instante em que o indivíduo, envolvido pela fonte de satisfação - prazer sexual -, canalizam todas as suas energias na conquista de algo efêmero e muitas vezes gerador de angústias.

 

Essencialmente, o domínio do erotismo é o domínio da violência, o domínio da violação. [...] Sem uma violação do ser contínuo - que se constitui na descontinuidade – não podemos imaginar a passagem de um estado a um outro essencialmente distinto. [...] A passagem do estado normal ao de desejo erótico supõe em nós a dissolução relativa do ser constituído na ordem descontínua. [...] Toda a concretização erótica tem por princípio uma destruição da estrutura do ser fechado que é, no estado normal, um parceiro do jogo. ( BATAILLE, 2004, p.27-29)

 

Dentro desse viés de raciocínio, o erotismo funciona à serviço da crítica social. Por isso é necessário, segundo FRANCONI (1997, p.29) “analisar o discurso erótico como portador de uma imensa fama de sutilezas”6, onde as posições de dominador e dominado tendem a alterar-se constantemente.

 

Ainda,  assumindo esse olhar, segundo Ivan dos Santos7 é possível perceber três momentos distintos que os personagens das narrativas de Caio lidam com a sexualidade e seus corpos. No primeiro momento, os protagonistas vivem num período anterior a contracultura, o segundo sobre a influência do movimento, e no terceiro submetidos ao terror da AIDS.

 

Nesse primeiro olhar, os personagens não aceitam suas emoções, toques ou a expressão dos sentimentos, embora sintam um extremo desejo por isso. É o caso do conto “Sargento Garcia” 8que traz a iniciação homoerótica e sexual de um adolescente que se divide em dois momentos. O conto em questão divide-se em duas partes. Uma quando ocorre a entrevista para o alistamento militar e são apresentados os protagonistas9 (“Hermes” - o adolescente, e “Sargento Garcia”)  revelando-se,nesse instante, uma relação de poder hierárquica e também um sutil erotismo.

 

A segunda parte se inicia fora do exército. Quando “Hermes” é envolvido pelo “Sargento Garcia” e se depara com seu destino. O encontro sexual dos dois acontece num espaço reservado meio decadente e mítico, habitado por uma única personagem - “Isadora”, um travesti, dona da casa de quartos e que presencia o encontro clandestino: “[...] Ninguém esquece uma mulher como Isadora10”.

 

Já, os personagens que experimentaram a contracultura, segundo Ivan dos Santos (2004), têm outra forma de experimentar a sexualidade. Entregam-se ao amor livre e descontrolado, sem grandes manifestações de preconceito. Nas relações com o corpo evidenciam-se o culto ao hedonismo e a manifestação do desejo. Ambos não estão sujeitos aos padrões morais rígidos.

 

Isso pode ser traduzido no conto “Terça-feira gorda”- narrado em 1ª pessoa, extremamente erótico e com certa ironia, o conto relata de forma verborrágica um encontro anônimo entre dois homens num baile de carnaval: é o prelúdio a uma entrega mútua de dois corpos masculinos: “Você é gostoso, eu disse. Eu era só um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o dele, que por acaso era de homem também”. (ABREU, 1995, p.51). “Terça-feira gorda” utilizando a alegoria do carnaval, segundo FRANCO, representa a tessitura de uma violência “sombria mesclada a explosões circunstancias de euforia e aparente desregramento que caracterizam um modo de ser “alegre”, irresponsável e brutal”. (2000, p.92)

 

Embora haja tragédia, o recurso é de reter o último instante antes do desfecho fatal e extrair imagens fortes, luminosas e coloridas dele. Outra recorrência é a utilização, no meio dessa guerra do desejo homossexual com as forças coletivas, não do corpo do protagonista, mas do objeto de desejo dele como vítima principal da violência.

 

O terceiro momento, apontado por Ivan dos Santos, instaura-se o terror da AIDS presentes nos contos. Embora sugerida, a primeira referência de Caio Fernando Abreu à AIDS11 está no conto “Transformações”, de Morangos Mofados. Este texto, denominado pelo próprio autor como uma fábula, discorre sobre o vazio de um homem solitário, que sente uma “grande falta”. Apenas quando suas têmporas se tornam grisalhas e os sulcos em volta dos lábios se afundam é que ele encontra uma “Outra Pessoa”.

 

Esse estilo vertiginoso e impressionista marcado pelo jogo como na crônica12“O rosto atrás do rosto, do mesmo autor, lembra que “o rosto não era um rosto vivo. O outro rosto” era uma máscara morta sobre um outro rosto vivo. Estendeu as duas mãos e arrancou a máscara do outro rosto”.

 

Entre máscaras, amor, solidão e morte Caio estabelece pontes de sua narrativa com os valores do Decadentismo “ que floresceu maquiando a escritura, na tentativa de transfigurá-la ao máximo, através de fulgurações, refinamentos estéticos, numa exacerbada consciência de estilo”. (MUCCI, 1994, p. 67)

 

Essas prosas catárticas, porém carregadas de lirismo, aproximam-se das considerações de Bataille sobre o erotismo e do potencial expressivo levantado por Merleau-Ponty13 “capaz de falar muito mais do que aquilo que já foi dito”.

 

 

  1. PARA NÃO CONCLUIR: O VENENO E A VORAGEM

 

O corpo é o lugar da descoberta do ser, onde a liberdade, sob a forma de força extremamente dionisíaca, ensaia um grito contra tudo aquilo que a sociedade constrói sob a forma de discurso de repressão. No espaço do corpo, presente nas narrativas de Caio Fernando Abreu, os espaços geográficos se diluem, assim como o tempo, tomando e recriando novas dimensões.

 

O discurso de Caio Fernando Abreu denuncia, através de Morangos Mofados, a fúria e a suposta leitura de “um outro morango”: escaldante, vermelho-erótico, alegórico. Por trás dos contos e dos personagens que vivem na cidade, os morangos guardam um grito, um silvo angustiado que quer vir à superfície e se fazer ouvir.   Esse olhar vem metaforizado pela aparência do vermelho da fruta e da errância que percorrem toda a coletânea.  Segundo  BORDINI (1996, p. 12):

 

 Sua vida, vivida além dos limites tradicionalmente postos pela classe média, misturou-se com a de seus mundos ficcionais tendo por elo de ligação um discurso predominantemente ensimesmado. Em busca de experiências-limites, vagueou pelas cidades como o flaneur baudelaireano, olhou a multidão mecanizada e iludida e foram surgindo seus novos contos, em diversas coletâneas, das quais Morangos Mofados foi a mais aplaudida.

 

 

Não adianta, “não existe volta para quem escolheu o esquerdo” 14, como disse Caio. Como esses e muitos outros contos, o escritor da paixão se insere na categoria dos textos “escrevíveis”, tratados por Roland Barthes (1992, p.38). Ou seja, a cena do fulgor vital dos contos mencionados aqui é a da própria escrita, como se aí revelasse mais intensamente - no limiar, digamos - o aspecto extremamente transgressor da poética de Caio Fernando Abreu. Estes são tipos de “textos-voragens” e perversos15 que não comportam mais as designações convencionais de conto ou novela, pois “faz(em) vacilar as bases históricas, culturais e psicológicas do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz(em) entrar em crise sua relação com a linguagem”. (BARTHES, 2004, p.20-21)

 

NOTAS

 

1           Esse termo foi empregado por Júlia Kristeva em 1966 para caracterizar a produtividade textual a partir do conceito de dialogismo de M. Bakhtine. No ensaio “ A Palavra, o Diálogo e o Romance” , a intertextualidade, cunhada e difundida por Kristeva, é explicada como uma propriedade do texto literário que “ se constrói como um mosaico de citações, como absorção e transformação de outro texto”. Para ela “ em lugar da noção de intersubjetividade se instala a de intertextualidade e a linguagem poética se lê, ao menos, como dupla. A teoria do texto se fundamenta logo em três grandes premissas: a primeira, “ que a linguagem poética é a única infinitude do código; depois, que “ o texto literário é duplo: escrita /leitura” e, finalmente, que o texto literário é “ um feixe de conexões”. Isso posto, temos o texto como “diálogo de várias escrituras” e o que era antes entendido numa relação individual (intersubjetiva) passa a ser coletivizado, ou seja, as relações são estabelecidas no conjunto de textos. Desse modo, os contos de Caio Fernando Abreu ressalta sua natureza heterotextual, sendo penetrado de alteridade, constituído de outras palavras além das próprias. (KRISTEVA, Júlia. A Palavra, o diálogo e o romance. In: Introdução à Semanálise. Perspectiva, São Paulo, 1974. p. 61-90.

 

2           A alegoria, segundo Luiz Costa Lima, “contém uma dificuldade específica: se ele permitir a pura transcrição tipo “isso significa isso”, o isso, ou seja, a narrativa, se torna inútil, casca de fruta que se joga fora. Para assumir significação, o fantástico necessita criar uma curva que o reconecte com o mundo. Se, entretanto, essa curva se tornar a única, persistirá a significação com o apagamento de sua fonte. Para se manter, a alegoria precisa ser plural. (L.C.Lima.  O conto na modernidade brasileira, 1983, p.207)

 

3           DACASTAGNÈ, Regina. O Espaço da Dor. O regime de 64 no romance brasileiro. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1996. p. 81

 

4             A esse respeito ler a pesquisa Atritos e Paisagens. Um Estudo sobre a loucura e a homossexualidade nos contos de Caio Fernando Abreu, de Alessandra Leila Borges Gomes. UFB, 2001.

 

5           Termo utilizado por Lucia Castelo Branco ao comentar a literatura erótica  “que vai funcionar sobretudo como elemento questionador e denunciador da hipocrisia, da tirania e da miséria social ( e sexual) em que vivemos”. (BRANCO, Lucia C.. In: O que é erotismo. São Paulo. Brasiliense, 2004. p. 57).

 

6             Aqui vale ressaltar o jogo lúdico nos contos de Caio F Abreu. O jogo, para Barthes, é ao mesmo tempo uma atividade sem finalidade outra senão o próprio jogo (função estética) e uma tética de crítica e transformação da ideologia congelada nas repetições linguageiras (função política-utópica). Por ser uma trapaça, uma esquiva, um logro, esse jogo está ligado ao teatro, ao fingimento. O fingimento, a encenação, são os únicos meios de o sujeito se processar na escritura. (PERRONE-MOISÉS, 2004, p.82) A esta trapaça salutar, Barthes chama literatura. Aqui, os jogos da arte serão tomados como artifícios da linguagem.

 

7           SANTOS, Ivan dos. Caio Fernando Abreu: Repórter de uma geração. Florianópolis - SC.  Universidade Federal de Santa Catarina, 2004. Mimeo. (Dissertação de Mestrado).

 

8           ABREU, Caio Fernando Abreu. In: Morangos Mofados. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. p. 76-92

 

9           Não é muito comum nomes nos personagens de Caio, mas nesse caso ele assume papel importante de alegoria. Há diversas versões para o mito de Hermes (o grego) ou o Mercúrio (o latino). Uma das mais conhecidas, o identifica como o filho mais inteligente de Zeus. E que ele era andrógino e possuía muita astúcia e inteligência. Tinha poder de tornar-se invisível e de viajar por toda a parte. Era o mensageiro dos deuses e com sua varinha mágica controlava o vento e as nuvens. O personagem, nesse caso, identifica-se com o personagem mítico. Os dois, personagem e mito, seriam andróginos e ladrões (enganadores). “ Dobrei a esquina, passei na frente do colégio, sentei na praça onde as luzes recém começavam a ascender. A bunda nua da estátua de pedra. Zeus, Zeus ou Júpiter, repeti. Enumerei: Palas-Atena ou Minerva, Posêidon ou Netuno, Hades ou Plutão, Afrodite ou Vênus, Hermes ou Mercúrio. Hermes repeti, o mensageiro dos deuses, ladrão e andrógino. Nada doía. Eu não sentia nada. “ (Sargento Garcia. In Morangos Mofados. 1995, p.91)

 

10          Morangos Mofados, 1995, p. 89.

 

11         Esse mesmo viés pode ser percebido em outros contos do mesmo autor, como em Anotações sobre um amor urbano e Depois de Agosto, de Ovelhas Negras; Dama da Noite, de Os Dragões não conhecem o Paraíso; Pela Noite, de Estranhos Estrangeiros.

 

12          Crônica: O Rosto atrás do rosto. In: Pequenas Epifanias. Porto Alegre: Sulina, 1996.p.37.

 

13          O impensado na leitura. p.124. In: Merleau-Ponty: Uma Introdução. Paulo Sérgio do Carmo. São Paulo: EDUC, 2004.

 

14          Frase do conto: Pela Noite. In. Estranhos Estrangeiros. p. 153

 

15         Conceituo a escrita de Caio Fernando Abreu de “perversa” porque ele enreda e seduz o leitor, tal qual uma presa fácil de sua armadilha textual. Nela, o leitor se esbate num estado de extremo mal-estar pós-moderno que é compensado, ao mesmo tempo, por uma envolvente fruição. Ainda sobre o assunto, o filósofo Patrick Vignoles, em seu livro A Perversidade, afirma: “A perversidade é o mal que pode tomar a máscara do bem, da inocência assim como do crime” (p.78) “O perverso ‘diverte-se’ com demolir o mundo humano, como se recusasse fazer parte dele ou como se fosse impotente para nele integrar-se” (p.67)

 

 

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